O FILHO DE MARIA, PÃO DESCIDO DO CÉU
José Enrique GalarretaJn 6, 41-51
Com que pão nos saciamos? Jesus, o filho de José, é o pão que mais nos alimenta. O seu pão faz-nos esquecer todos os outros pães.
Entre os domingos 17º a 21º do Tempo Comum é proposta a leitura do capítulo 6º do quarto Evangelho, o chamado «Discurso do Pão da Vida». Teria sido muito mais correto ler e meditar o discurso do Pão da Vida por inteiro, de uma só vez, porque o seu conteúdo forma uma unidade. Mas, para sem dúvida não incluir na celebração textos demasiado longos, o discurso foi dividido em cinco domingos, com a consequente repetição de temas.
O episódio é precedido da multiplicação dos pães. No fragmento anterior vimos como o povo queria torna-lo rei, e como Jesus os despediu e se afastou para a montanha a fim de passar a noite em oração. Ao regressar a Cafarnaum, o povo voltou a acossá-lo, e Jesus voltou a situar o tema no seu lugar correto, não no entusiasmo pelo rei que reparte o pão de forma grátis, senão na aceitação de Jesus como o Enviado de Deus.
Jesus apresenta-se expressamente como tal, e afirma a sua superioridade sobre Moisés, aproveitando o sinal do pão e do maná no deserto. Mas o texto de hoje acrescenta ao anterior duas matizes: a rejeição por parte das pessoas, que não podem admitir a Jesus como superior a Moisés, nem muito menos como Enviado de Deus, e a pergunta "como pode ele dar-nos a comer a sua carne?", tão obstinada como hoje.
Reflexão
Se Jesus pronunciou realmente as palavras "Eu sou o Pão Vivo descido do Céu" (já sabemos como o quarto Evangelho costuma colocar na boca de Jesus as suas próprias profissões de fé), o desconcerto dos seus interlocutores é absolutamente lógico, e a sua conclusão seria que Jesus se teria tornado louco. Expressam-no muito bem as primeiras linhas do Evangelho de hoje.
É o filho de José, conhecemos os seus pais (o quarto evangelho repete essa expressão, "filho de José" em 1,45 e 6,42) como pode dizer que baixou do céu?
Trata-se, como vemos, do mesmo tema que apareceu já no 14º domingo, a propósito de Marcos 6. Parece evidente que o quarto evangelho recolheu aquele mesmo episódio da rejeição e escândalo dos seus conterrâneos e a aproveitou para fazer uma catequese sobre "quem é Jesus".
No domingo passado perguntávamo-nos: que motivos podem ter os que conheceram a Jesus para o seguir, até ao extremo de abandonar costumes tão seculares e sagrados? E nestes parágrafos se pode ver algo que nos tínhamos esquecido: Jesus está a pedir uma superação tão completa da lei de Moisés que produzirá escândalo e rejeição. Hoje está na moda insistir no judaísmo de Jesus que se esquece a terrível rutura que supôs a vida a Jesus (estamos a esquecer-nos do vinho novo e dos odres velhos!).
Isto produzirá o afastamento do povo. Não somente a estupidez de comer a carne de Jesus e beber o seu sangue, como também o significado desta imagem: não procurar alimento na Lei de Moisés senão em Jesus. O facto de esta mensagem ter tal importância precisamente no quarto evangelho diz muito da evolução da fé nas comunidades ditas joanicas e do posicionamento "anti-judio" do quarto Evangelho.
Falamos muito do significado de Paulo para a abertura da Igreja aos não-judeus, mas deveríamos recuperar a importância do mundo "de João" na compreensão da novidade da mensagem de Jesus quanto à antiga lei.
A força desta mensagem leva-nos a compreender que a sua redução à eucaristia (ainda que sendo válida) não é suficiente. É um grande símbolo acerca de Jesus: Jesus pão, Jesus água, Jesus luz, são os três grandes símbolos de Jesus no quarto evangelho, na mesma linha metafórica dos evangelistas e do estilo pessoal de Jesus, que se expressa em parábolas, não em conceitos.
Esquecemo-nos do seu estilo, preferimos inverter o sentido das palavras de Jesus para afirmar que o pão eucarístico é Jesus, quando o sentido original é que Jesus é pão. Devemos unir também a imagem de Jesus/pão com a imagem Jesus/grão de trigo que é semeado e morre para poder ser fecundo. Deveríamos tirar proveito das imagens do quarto evangelho a partir do seu significado primitivo, tão válido e significativo.
É uma catequese que também nós necessitamos. Jesus, o filho de José e Maria (segundo a expressão que usa o quarto evangelho), veio do céu. E nós, obstinados em converter os símbolos em fenómenos físicos, imaginamos ao Verbo de Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, a viajar pelo espaço infinito e a aterrar no seio de Maria para a fecundar e dar origem a Jesus, que assim pode dizer que baixou do céu.
Seria muito recomendável que usássemos a frase completa: Jesus não diz que é alguém que baixou do céu, mas o pão descido do céu. E do mesmo modo que Jesus não é um pão, assim também não desceu de parte nenhuma. As duas expressões são igualmente simbólicas, e nisso radica a sua força. Reduzir o sentido simbólico é fortemente insatisfatório.
Jesus é pão. Jesus, o filho de José e Maria, é pão. Se entendemos isso, poderemos entender a expressão "descido do céu". Se não, não. Lamentavelmente, reduzimos o significado das duas expressões e as convertemos em "sucessos mágicos": o pão é Jesus: em Maria se produziu um milagre biológico. Estas reduções são muito satisfatórias: voltamos a ter a Deus encerrado no templo, numa presença que muitos imaginam como física, e fazemos da humanidade de Jesus um disfarce da sua divindade, que é "a sua verdadeira natureza".
Era muito lógico que os contemporâneos de Jesus, especialmente os seus vizinhos e os seus parentes, resistissem à mensagem. E é muito lógico que nós resistamos a sair das nossas conceções mítico-mágicas. A religião de Jesus supera em tal medida as nossas "religioesinhas" razoáveis ou míticas, que sentimos vertigens em acreditar nele. Porque há que crer num homem, não numa divindade disfarçada, há que crer que a ação de Deus está verdadeiramente feita carne, não vestida de carne.
Há que alimentar-se do pão que é Jesus, não do que nós inventamos. Às vezes o quarto evangelho é tomado como uma aventura gnóstica, na qual Jesus se apresenta como um ser sobrenatural com aparência humana. Mas, se o lemos corretamente, está insistindo precisamente no contrário. Jesus é a tenda de Deus entre nós, o pão que Deus nos dá, a água da qual havemos de beber: Jesus, o filho de José e Maria, carpinteiro de Nazaré, que foi crucificado diante do escárnio dos seus inimigos que lhe atiravam à cara que não poderia descer da cruz.
Os seus vizinhos não podiam crer em Jesus. Nem os seus olhos nem a sua fé anterior lhes permitia. Este Evangelho está a aproximar-nos portanto à situação dramática das primeiras comunidades de crentes em Jesus, e enfrenta-nos hoje com um desafio radical: qual é a minha luz, o meu alimento, a minha água? Dito de outra maneira, quem é o Senhor da minha vida?
Costumamos caminhar à luz dos valores que dirigem as nossas opções. É-nos proposta outra luz, outros valores para iluminar o caminho. Costumamos alimentar-nos das satisfações que encontramos no que chamamos de êxitos, pessoais, económicos, sociais. Costumamos ter sede de possuir, de gastar, de comprar, de prosperar, de destaque... Mas essa fome e essa sede nunca nos saciam.
Em todos esses âmbitos a satisfação do desejo não sacia senão que desperta outro desejo maior. O pão e a água do Reinos são outros valores, diante dos quais os valores habituais perdem o seu encanto. Quando Jesus chama aos pobres, aos que sabem sofrer, aos misericordiosos, aos limpos de coração... "felizes", está a dizer que o seu modo de vida faz desaparecer a fome e a sede de outras coisas da terra. Poderíamos acrescentar às Bem-Aventuranças esta última como resumo:
"Felizes os que vivem os valores do Reino, porque já não terão mais sede dos valores da terra"
Aqui entra maravilhosamente a última frase do texto do livro dos reis, acerca de Elias: "Levanta-te, come, que o caminho é superior às tuas forças".
Deveríamos entender muito claramente que o caminho de seguir a Jesus não é mais uma decisão humana, mas uma obra do Espírito, do Vento de Deus, em nós. A Igreja está chamada a continuar a obra de Jesus, quer dizer, a ser pão para a vida do mundo; e é um trabalho superior às nossas forças.
Por isso é tão imprescindível perguntarmo-nos pelo alimento. Onde vamos buscar forças para viver um tipo de vida tão íngreme, tão diferente dos critérios e valores que nos envolvem? Onde vamos buscar forças para cumprir o destino que o Sermão da Montanha propõe (incrivelmente) com frases tão fortes como "vós sois a luz do mundo e o sal da terra", "sede perfeitos como o vosso Pai Celeste é perfeito"?
A resposta é evidente: da união com Deus, da vida interior, da oração, da eucaristia, da comunidade dos crentes... de deixar a Deus atuar em nós para que seja Ele quem trabalha no mundo através de nós.
José Enrique Galarreta
(traducción de Rui Pedro Vasconcelos)